Uma análise sob o ponto de vista da vulnerabilidade do consumidor
O presente texto tem o objetivo de analisar suscintamente a inclusão de débito prescrito em sistemas de renegociação de dívidas ou de cobrança extrajudicial sob o ponto de vista da vulnerabilidade do consumidor.
Para tanto, faz um apanhado das tentativas de uniformização da jurisprudência sobre o assunto em cinco tribunais estaduais, o que deu ensejo à afetação do tema ao rito dos recursos repetitivos pelo Superior Tribunal de Justiça com a consequente suspensão, sem exceção, de todos os processos que versem sobre a mesma matéria, individuais ou coletivos, em processamento na primeira ou na segunda instância.
Num primeiro momento a Turma Especial da Subseção II de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, em sessão realizada aos 22 de setembro de 2022, aprovou o Enunciado nº 11 segundo o qual “a cobrança extrajudicial de dívida prescrita é ilícita. O seu registro na plataforma ‘Serasa Limpa Nome’ ou similares de mesma natureza, por si só, não caracteriza dano moral, exceto provada divulgação a terceiros ou alteração no sistema de pontuação de créditos: score”.¹
Posteriormente, instaurado o IRDR no âmbito das Turmas Especiais Reunidas de Direito Privado 1, 2 e 3 do Tribunal de Justiça de São Paulo em novembro de 2024 o Incidente foi julgado prejudicado por perda superveniente de interesse processual tendo em vista que a afetação de recurso, por tribunal superior, impossibilita o cabimento do IRDR nos termos do art. 976, §4º, do CPC. ²
Em outubro de 2022 o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou IRDR sobre o tema afastando o direito à indenização pela inscrição de dívida prescrita em plataforma de negociação entendendo pela legalidade da prática analisando especificamente o caso da plataforma “Serasa Limpa Nome”.³
Na sequência, em novembro de 2022 o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte entendeu que não é possível a propositura de ação com a única finalidade de ter reconhecida a prescrição julgando então prejudicados os pedidos de reconhecimento de inexigibilidade da dívida e de indenização por danos morais.⁴
Já em abril de 2023 o Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidiu admitir a instauração do IRDR ponderando a existência de corrente majoritária no âmbito daquele tribunal no sentido de que a prescrição impede apenas a propositura de ação judicial, sendo possível a cobrança ou negociação extrajudicial de dívidas prescritas, acrescentando que o cadastro “Serasa Limpa Nome” não pode ser consultado por terceiros e nem afeta o score do consumidor, persistindo entretanto a controvérsia.
Por sua vez, o Tribunal de Justiça do Amazonas em junho de 2023 entendeu que as plataformas de negociação de dívidas possuem natureza distinta dos serviços de proteção ao crédito, não configurando portanto negativação. Assim, decidiu que o registro de dívidas prescritas em plataformas de negociação é legítima e não configura indevida restrição de crédito, afastando a configuração de ato ilícito ensejador de dano moral e a correspondente reparação. Observou, entretanto, que deve ser respeitado o sigilo das informações e que não pode haver coerção para aderir à proposta de pagamento .
Por fim, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça em 03 de junho de 2024 decidiu submeter o julgamento da matéria ao rito dos recursos repetitivos para “definir se a dívida prescrita pode ser exigida extrajudicialmente, inclusive com a inscrição do nome do devedor em plataformas de acordo ou de renegociação de débitos.”
Em vista desse quadro fático, no que diz respeito às relações de consumo temos a presunção de vulnerabilidade do consumidor por força do artigo 4º, inciso I do Código de Defesa do Consumidor.
A prescrição, por sua vez, está relacionada à extinção da pretensão conforme o artigo 189 do Código Civil. Como pretensão a maioria da literatura jurídica entende o poder de exigir uma prestação sendo portanto um fenômeno do campo material gerando efeitos processuais de modo reflexo.
Quanto aos impactos da inclusão do devedor especificamente no “Serasa Limpa Nome”, verifica-se influência direta sobre o “score” do consumidor. Isto porque atualmente o pagamento de uma dívida negativada no “Serasa Limpa Nome” tem o potencial de fazer o “score” subir, inclusive imediatamente se o pagamento for efetuado por PIX. Assim, a pontuação “score” afeta a aprovação de crédito e a qualidade das ofertas. Isto porque um “score” alto pode garantir melhores condições, como maiores limites de crédito e juros menores indicando boa gestão financeira e confiabilidade para as empresas.
Resta evidente, portanto, os efeitos deletérios da inclusão do consumidor naquela plataforma na sociedade de consumo atual. Conforme julgado recente do Tribunal de Justiça de São Paulo:
Ora, a referida plataforma [Serasa Limpa Nome] é autêntico banco de dados acessado por terceiros, posto ser essa sua finalidade precípua, inclusive considerando que a inscrição de dívida influencia na redução do score do consumidor.
Portanto, em casos como este, não se pode olvidar as inexoráveis consequências patrimoniais à autora em uma sociedade capitalista, hedonista, marcada pelo neoliberalismo financista e fundada na perspectiva da honra financeira decorrente da imagem publicizada.
O nome, que integra o direito da personalidade e tem caráter de indisponibilidade, inalienabilidade, vitaliciedade e intransmissibilidade, que é imprescritível, extrapatrimonial, irrenunciável e oponível erga omnes, constitui um bem de extrema importância na estrutura material do capitalismo embasado, sobretudo nos dias atuais, no sistema financeiro.
Para que as pessoas, físicas ou jurídicas tenham crédito, no comércio ou no mercado de capitais, é imprescindível que seu nome esteja livre de quaisquer máculas de ordem financeira ou patrimonial, o que significa ausência de inscrição nos cadastros de maus pagadores. Assim, a inscrição do nome na referida Plataforma gera inúmeros prejuízos para as pessoas que têm seu crédito restringido e são impedidas do fazimento de compras em determinadas lojas, impossibilitadas de acessar o sistema de crediário e expostas a inúmeras e constrangedoras dificuldades para a realização de operações bancárias de toda natureza, inclusive de obtenção de empréstimos.
Conforme reconhecido nas Regras de Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade aprovadas pela XIV Conferência Judicial Ibero-americana, que teve lugar em Brasília em 2008, “pouca utilidade tem que o Estado reconheça formalmente um direito se o seu titular não pode aceder de forma efectiva ao sistema de justiça”.
Com efeito, verificou-se nos últimos anos a evolução do conceito de acesso à justiça seguido pela legislação brasileira, significando este na atualidade não apenas acesso ao Judiciário mas, ao contrário, a garantia de acesso a uma ordem jurídica justa na qual os cidadãos tem o direito de ser atendidos em todas as suas necessidades e de forma adequada constatando-se que o grande desafio está em substituir a “cultura do litígio” pela “cultura da pacificação”.
E também não se pode substituir a “cultura do litígio” pela “cultura da negativação” notadamente considerando-se o compromisso com a pacificação social assumido pelas políticas públicas em vigor.
Sabe-se que a segurança da ordem jurídica e a pacificação social são grandes fundamentos da prescrição. Assim, permitir a cobrança de dívida prescrita dá ao fornecedor o direito de manter o consumidor eternamente cativo e devedor. Essa situação é especialmente perigosa no estágio atual da sociedade marcada pelo superendividamento em grande escala das camadas sociais menos favorecidas e consequentemente mais vulnerabilizadas.
Ressalta-se que o endividamento é uma característica marcante da sociedade de consumo. Conforme Bauman, “todos os que podiam se transformar em devedores e milhões de outros que não podiam e não deviam ser induzidos a pedir empréstimos já foram fisgados e seduzidos para fazer dívidas”.
Ora, no caso das relações de consumo, se o fornecedor deixa de exercer sua pretensão executiva dentro do prazo prescricional e se a prescrição incide sobre o próprio direito material conforme a literatura majoritária, não faz sentido permitir a inclusão de débito prescrito em sistemas de renegociação de dívidas ou de cobrança extrajudicial.
Nessa linha, o credor tem o dever de mitigar o próprio prejuízo em atenção à boa-fé que deve reger os negócios jurídicos. Assim, a parte a que a perda aproveita não pode permanecer deliberadamente inerte sob pena de infringir os deveres de cooperação e lealdade. Isto porque a inércia do credor demonstra ausência de zelo com o seu patrimônio e provoca agravamento significativo das perdas , notadamente pelo acréscimo de juros e correção monetária sendo certo que a realização da cobrança no prazo prescricional diminuiria a extensão do dano.
Assim, com vistas à uniformização da jurisprudência é fundamental a manifestação do Superior Tribunal de Justiça em sede de recursos repetitivos sobre a exigência extrajudicial de dívida prescrita e a inscrição do nome do devedor em plataformas de acordo ou de renegociação de débitos. Essa análise precisa levar em consideração os efeitos da inscrição em plataformas como o “Serasa Limpa Nome” considerando-se principalmente que na atualidade também é analisada para fins de oferta de crédito ao consumidor, uma categoria social vulnerável por força de lei.
Notas:
1 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Enunciado nº 11. Turma Especial da Subseção II de Direito Privado. São Paulo, 22 de setembro de 2022. Disponível em: Turma Especial da Subseção II de Direito Privado. Acesso em: 20 fev. 2025.
2 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. IRDR n. 2026575-11.2023.8.26.0000. Turmas Especiais Reunidas de Direito Privado 1, 2 e 3. Relator: Desembargador EDSON LUIZ DE QUEIROZ. São Paulo, 22 de novembro de 2024. Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/NugepNac/Irdr/DetalheTema?codigoNoticia=95126&pagina=1. Acesso em: 20 fev. 2025.
3 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. IRDR n. 0032928-62.2021.8.21.7000. Quinta Turma Cível. Relatora: Desª Katia Elenise Oliveira da Silva. Porto Alegre, 11 de outubro de 2022. Disponível em: https://www.tjrs.jus.br/institu/nurer/irdr.php. Acesso em: 20 fev. 2025.
4 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte. IRDR n. 0805069-79.2022.8.20.0000. Seção Cível. Relator: Juiz Ricardo Tinoco de Góes (Convocado). Natal, 30 de novembro de 2022. Disponível em: https://tjrn.jus.br/documentos/consulta-de-precedentes-irdr/1511-irdr-09-tjrn. Acesso em: 20 dev. 2025.
5 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. IRDR n. 1.0000.22.184442-6/001. 2ª Seção Cível. Relator: Des. José Augusto Lourenço dos Santos. Belo Horizonte, 25 de abril de 2023. Disponível em: https://www4.tjmg.jus.br/juridico/sf/relatorioAcordao?numeroVerificador=100002218444260012023594626. Acesso em: 20 fev. 2025.
6 BRASIL. Tribunal de Justiça do Amazonas. Incidente de Uniformização de Jurisprudência n. 0003543-23.2022.8.04.9000. Turma de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Cíveis, Criminais e da Fazenda Pública do Estado do Amazonas. Juiz Relator: Francisco Soares de Souza. Manaus, 1º de junho de 2023. Disponível em: https://www.tjam.jus.br/index.php/juizados/consultas/incidentes-de-uniformizacao-de-jurisprudencia. Acesso em: 20 fev. 2025.
7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial representativo de controvérsia n. 2.092.190 – SP. Segunda Seção. Relator: Ministro João Otávio de Noronha. Brasília, 03 de junho de 2024. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1264&cod_tema_final=1264. Acesso em: 20 fev. 2025.
8 BELLIZZE, Marco Aurélio. A prescrição e a atualização do Código Civil. Migalhas de peso, 31/10/2023. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/depeso/396195/a-prescricao-e-a-atualizacao-do-codigo-civil. Acesso em: 20 fev. 2025.
9 LEONARDO, Rodrigo Xavier. A prescrição no Código Civil brasileiro (ou o jogo dos sete erros). Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, n. 51, 2010, pp. 101-120, p.106.
10 O QUE É pontuação de Score de crédito? Serasa Score, [s.l.], 19 fev. 2025. Disponível em: https://www.serasa.com.br/score/blog/pontuacao-de-score-e-como-ela-afeta-suas-financas/. Acesso em: 21 fev. 2025.
11 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 1034413-16.2023.8.26.0002. 28ª Câmara de Direito Privado. Relator: Des. Rodrigues Torres. São Paulo, 20 de fevereiro de 2025.
12 CONFERÊNCIA JUDICIAL IBERO-AMERICANA. Regras de Brasília sobre acesso à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade. 2008. Disponível em: https://www.anadep.org.br/wtksite/100-Regras-de-Brasilia-versao-reduzida.pdf. Acesso em: 21 fev. 2025, p. 4.
13 WATANABE, Kazuo. Atualização do Conceito de Acesso à Justiça. In: LAGRASTA, Valeria Ferioli. Curso de formação de instrutores: negociação, mediação e conciliação. [S.l.]: ENAPRES, 2020, p. 21-27.
14 MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
15 BAUMAN, Zygmunt. Vida a Crédito: conversas com Citlali Rovirosa-Madraso. Tradução de Alexandre Werneck. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 31.
16 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 758.518/PR. Relator: Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador Convocado do TJ/RS), Terceira Turma, julgado em 17/6/2010, REPDJe de 1/7/2010, DJe de 28/06/2010; Enunciado nº 169 da III Jornada de Direito Civil segundo o qual o "princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo".
Julia Fátima Gonçalves Torres é Mestranda em Direito pelo PPGD – UFPel na Linha de Pesquisa Direito e Vulnerabilidade Social sob orientação do Professor Doutor Fernando Costa de Azevedo. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito do Consumidor (GECON/UFPEL/CNPq). Especialista em Direito de Família e Sucessões e em Direito Civil e Processual Civil pela ESA-Santos/SP. Advogada. Lattes: https://lattes.cnpq.br/4989741699721628. ORCID: 0000-0001-6771-5922.
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